Eu não quero me arrepender




Nem o impacto daquele cenário; os corredores brancos, a impressão ruim daquele cheiro de remédio, de álcool e desinfecção puderam me distrair que estava fazendo lá.

Cheguei antes de todos os que iriam se encontrar lá para rezar o terço com a pessoa que, muito doente, já não voltaria para casa nunca mais.
Então, tive tempo de observar o vai e vem dos visitantes, pacientes e bastante tempo pra pensar sobre a fragilidade dessas coisas. Por exemplo: como era estar desenganada como ela.

Imaginei uma senhora, talvez já viúva - uma pessoa de outros tempos que estava quase pronta pra deixar este.

O que encontrei lá me deixou com a sensação que vai ficar por um tempo: uma mulher bonita e delicada que, mesmo com todo o desgaste dos remédios de tratamento de câncer em estágio avançado, não abria mão da vaidade. Porque seus cabelos estavam caindo, ela resolveu cortá-los e adotar o estilo moicano.
E sabe que lhe caiu muito bem?

Olhei pra ela e sorri, então ela retribuiu o sorriso dizendo:

- Que lindo o seu cabelo. O meu era igual.

Foi exatamente aí que eu parei desde ontem, quando saí daquele hospital.

A Marli tinha trinta e três anos e já não tinha a forças para ficar sentada em seu leito. Sua família comentou que estava muito revoltada e já tinha até corrido com dois padres que teriam tentado uma incursão em seu quarto.

- Já estamos conformados. - disse seu irmão fora do quarto, enquanto ela dormia.

Engraçado como uma doença dessas faz todos ao redor sofrerem tanto que, em certo ponto, sequer tem mais o cuidado da delicadeza no trato. A intolerância e o cansaço acabam tomando conta e é então que as pessoas cedem.

- Em seu caso, a cura é como tentar costurar gelatina, disse.

Eu saí de lá pensando que podia ser eu. A Marli nunca teve a oportunidade de casar, não teria filhos, nem nada daquela vida que a maioria das mulheres idealiza e se desespera tanto.


No fim das contas, a gente cria muros, obstáculos e estratégias incríveis pra se proteger do que realmente ansiamos. Afinal, qual a lógica nisso tudo?

Eu escrevo aqui pra mim. É aqui que me perdoo pelas coisas que fiz a mim e aos outros.

E a minha desculpa da semana é: até onde vamos seguir nos machucando, fingindo que é the next best thing continuar vagando por aí do jeito que convencionamos?
Tem um prazo pra essa história de seguir mostrando sinais sutis (alguns nem tanto) da urgência que gritamos por dentro e, mesmo assim, continuamos ignorando?

E se esse tempo estiver acabando?
E se eu descobrir um câncer amanhã?
no fim, bem longe já não tenho você.
Me diz se nunca mais.